Está escrito:
“Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas” 2Coríntios 5:17 (NVI).
O evangelho não é simplesmente um convite para mudar de religião. É muito mais que isso. É um chamado radical para nascer de novo. Não se trata apenas de trocar hábitos, adotar uma moralidade diferente ou seguir um novo conjunto de regras. É uma transformação profunda, um renascimento produzido pela graça de Deus. No instante em que, pela fé, nos unimos a Cristo, Deus inicia em nós uma obra de engenharia espiritual – Ele não faz pequenos ajustes, mas nos recria a partir do centro do nosso ser.
Mas afinal, o que significa, na prática, ser uma nova criatura? E como essa verdade impacta a vida do cristão hoje, em meio às pressões, tentações e desafios da pós-modernidade?
Paulo não deixa margem para dúvidas: estar em Cristo é ser feito novo. Não é uma reforma do “eu antigo”, mas uma criação espiritual. John Stott resume bem: “O cristianismo não é uma melhoria do velho eu, mas a substituição dele pelo novo eu em Cristo”.
Romanos 6:14 nos ajuda a compreender essa realidade: “Pois o pecado não os dominará, porque vocês não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça”. A graça não apenas perdoa, mas liberta. O pecado perde o domínio, e o cristão passa a viver em uma nova esfera: a liberdade em Cristo.
Gálata 6:15 reforça esse mesmo princípio: “De nada vale ser circuncidado ou não. O que importa é ser uma nova criação”. Em outras palavras, não são rituais externos ou práticas religiosas que definem nossa identidade, mas a obra transformadora de Cristo dentro de nós.
Essa verdade ecoa em várias passagens bíblicas: João 3:3; Efésios 4:22-24; Colossenses 3:9-10 e Apocalipse 21:5 (Eis que faço novas todas as coisas). Esses textos revelam que a nova vida não é apenas um conceito, mas uma realidade presente e futura, já manifesta aqui e agora, e que culminará na eternidade.
Agostinho, ao refletir sobre sua conversão, escreveu em suas Confissões: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Estavas dentro de mim, mas eu te buscava fora”. Para ele, a novidade de vida não era superficial, mas uma transformação profunda do coração, que o levou a amar a Deus acima de todas as coisas.
Martinho Lutero também ressaltava esse caráter radical ao afirmar que o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador. Ou seja, em Cristo somos declarados justos, mas ainda vivemos a tensão de lutar contra a velha natureza.
Dietrich Bonhoeffer lembrava que essa novidade de vida exige concretude: “A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem disciplina da comunidade, é a ceia sem confissão dos pecados. A graça preciosa é a graça que nos chama a seguir a Jesus Cristo”.
E talvez aqui surja a pergunte: como é possível alguém confessar Jesus como Senhor e Salvador, frequentar uma igreja e ainda assim permanecer vivendo no pecado? Isso significa que essa pessoa nunca nasceu de novo, ou que ainda age com a disposição mental do “homem carnal”?
Para responder, podemos olhar por três perspectivas: bíblica, teológica e prática.
1. Bíblica. A Bíblia ensina que confessar Jesus como Senhor é essencial: “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo” (Romanos 10:9). Mas também alerta: confissão sem transformação não é evidência de novo nascimento. O próprio Jesus disse: “Nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mateus 7:21). Em outras palavras: a verdadeira fé em Cristo gera frutos visíveis de mudança, ainda que seja um processo.
2. Teológica. Paulo é claro em 2Coríntios 5:17 que, em Cristo, somos nova criação. Isso não significa perfeição imediata, mas uma nova disposição mental, acompanhada de uma luta contínua contra o pecado. João nos ajuda a entender essa tensão: “Se afirmamos que estamos sem pecado, enganamos a nós mesmos” (1João 1:8). E: “Ninguém que nele permanece vive pecando. Ninguém que continua a pecar o conhece ou dele é nascido” (1João 3:6). Aqui não há contradição. João não diz que o cristão nunca peca, mas que não permanece na prática deliberada e contínua do pecado, sem arrependimento. O Espírito Santo gera convicção e mudança real.
3. Prática. Paulo fala do “homem natural” (1Co 2:14) e chama alguns cristãos de Corinto de “carnais” (1Co 3:1-3), porque ainda viviam presos a inveja, divisões e paixões humanas. Isso mostra que é possível alguém começar a caminhada cristã e, mesmo assim, viver condicionado por padrões antigos, sem se render plenamente à ação renovada do Espírito Santo.
Mas, há uma diferença crucial:
- o não-regenerado vive no pecado sem arrependimento e o regenerado, mas imaturo, pode cair, mas sente pesar, busca restauração e vai sendo transformado pouco a pouco pela graça.
Assim, se alguém confessa Cristo, mas permanece confortável no pecado, sem arrependimento ou desejo de mudança, isso pode indicar duas coisas:
1. Nunca nasceu de novo, vivendo apenas uma fé intelectual ou emocional;
2. Ou está resistindo ao Espírito Santo, vivendo como “criança em Cristo”, sem buscar maturidade.
Em ambos os casos, o chamado é o mesmo: arrependimento, submissão ao Senhorio de Cristo e renovação da mente pela Palavra (Romanos 12:2).
Ser nova criatura em Cristo significa que nossa identidade já não está firmada em fracassos, no passado ou nos rótulos que o mundo nos impõe. Agora está ancorada em Jesus.
Na prática, isso se manifesta assim:
- No trabalho: não somos definidos pelo cargo ou salário, mas pela integridade e serviço.
- Nos relacionamentos: perdoamos porque fomos perdoados, amamos porque fomos amados.
- Na luta contra o pecado: não vivemos mais acorrentados, porque “o pecado não terá domínio sobre vocês” (Romanos 6:14).
- Na esperança diária: mesmo quando falhamos, podemos recomeçar, pois “aquele que começou a boa obra em vocês há de completá-la” (Filipenses 1:6).
Portanto, a vida nova em Cristo é um convite diário para viver como quem já pertence ao Reino de Deus, mesmo caminhando neste mundo. É uma verdade existencial, uma realidade espiritual e uma esperança escatológica.
Assim, a cada manhã, o cristão pode acordar lembrando: “O velho já passou. Hoje caminho em novidade de vida”.
Referências:
AGOSTINHO. Confissões. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2017.
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal; Vitória: Editora Unida, 2016.
LUTERO, Martinho. Os escritos principais de Martinho Lutero. Porto Alegre: Concórdia, 2000.
STOTT, John. A Mensagem de 2 Coríntios: do sofrimento à glória. São Paulo: ABU Editora, 2012.
✍️ Sobre o autor
Sola Scriptura - Solus Christus - Sola gratia - Sola fide e Soli Deo glória
Christós kyrios

2 comentários:
Aleluia! Glória a Deus! Que Palavra grandiosa! Encheu o meu coração de alegria e fortaleceu a minha fé! Obrigada! Deus te abençoe, hoje e sempre!
Amém!
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